( De Angola escreve )
José Goulão |
O super engano de um génio chamado George Orwell
George Orwell ter-se-á enganado. A sua antevisão do big brother olhando por nós a todos os instantes e em todos os momentos para que não atentemos por obras, palavas nem sequer pensamentos contra o poder instituído, necessita de superlativos. Bigger brother, um irmão ainda mais vigilante, dotado de olhos, boca e ouvidos que já não pertencem a este mundo dos seres vivos mas ao dos milagres da tecnologia, é uma sugestão aceitável, mas vamos por partes.
Como é sabido, o senhor Barack Obama fechou o ano de 2011 assinando a chamada Lei de Defesa Nacional, designação e tradução benévolas para um mecanismo autoritário que não apenas introduz no edifício legislativo norte-americano tudo o que George W. Bush impôs como excepção a seguir a 11 de Setembro de 2001 como ainda torna os conteúdos mais amplos e discricionários. O presidente dos Estados Unidos, eleito como um democrata e não como um republicano, se bem nos lembramos ainda, sabe perfeitamente o que assinou nesse dia. Assinou uma lei que um mês antes prometeu vetar.
Assinou uma lei que tem instrumentos com os quais diz não concordar e que portanto não serão aplicados enquanto for presidente, lavando as mãos a partir daí. Assinou uma lei que, como ele próprio reconhece, foi elaborada de maneira a ter conteúdos tão vagos que permitem interpretações baseadas na pura arbitrariedade.
A Lei de Defesa Nacional é a Lei Patriótica, o “Patriotic Act” de George W. Bush em ponto grande. Institucionaliza a detenção de suspeitos de terrorismo às mãos dos militares por tempo indeterminado, sem julgamento e sujeitos a interrogatórios – o que significa tortura como exemplos abundantes documentam nos últimos anos, desde as práticas de Guantanamo às utilizadas em prisões clandestinas da CIA em vários países, incluindo da União Europeia como Lituânia, Polónia e Roménia. Em princípio a lei aplica-se a suspeitos estrangeiros em território norte-americano, a suspeitos norte-americanos no estrangeiro; e, segundo vozes comuns na imprensa norte-americana, a cidadãos norte-americanos no interior dos Estados Unidos. Que o diga o soldado Manning, que padeceu mais de 17 meses nas mãos dos militares, sem culpa formada, suspeito do acto “terrorista” de ter entregue documentos oficiais que testemunham o modo abusivo como os Estados Unidos governam o mundo ao site WikiLeaks. Esta lei nacional é afinal supranacional, pois permite que a longa mão da “justiça militar” dos Estados Unidos se estenda pelo mundo fora. Além disso, será aplicada sem que exista uma definição de “terrorismo”. Membros da al-Qaida são “terroristas”, parece não haver dúvidas.
De certeza? O senhor a quem a NATO entregou o comando militar da capital da Líbia foi irmão de armas de Bin Laden é ou não um “terrorista”? O senhor presidente do Kosovo, que ali chegou comandando um grupo fundamentalista islâmico para criar um narco-Estado candidato à NATO e à União Europeia com apoio de Washington é ou não um “terrorista”? Os mercenários fundamentalistas islâmicos injectados pela Turquia e a Arábia Saudita na Síria para sabotar o cessar-fogo e forçar intervenção externa são ou não “terroristas”?
Nem o que parece certo é, afinal, certo. Por este caminho, um membro da al-Qaida pode não ser um terrorista e um qualquer cidadão que esteja cívica e civilizadamente contra o regime global do bigger brother pode muito bem vir a enquadrar-se no conceito amplo de “terrorista”.
Para tratar dessas coisas existe a Lei de Defesa Nacional e não só. No Utah, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos constrói o maior centro de espionagem mundial aonde irão parar todos os mails, todas as mensagens, todos os telefonemas que teremos a ousadia de fazer seja a quem for.
Isto é, por definição somos todos os suspeitos, obrigados num qualquer dia de juízo a demonstrar que somos inocentes.
Para tratar dessas coisas o Congresso dos Estados Unidos e os governos de muitos países preparam instrumentos como o SOPA, o PIPA e o ACTA para esquadrinharem a internet à procura de “terroristas” a pretexto da defesa de direitos de autor e de produtos contrafeitos. Para tratar dessas coisas, muitos governos da União Europeia estão a entregar aos Estados Unidos os dados que os seus cidadãos lhes fornecem para efeitos de arquivos de identificação. Para tratar dessas coisas, as multinacionais telefónicas são obrigadas a permitir que o governo dos Estados Unidos tenha acesso aos registos das chamadas dos utentes, as companhias aéreas que voam de e para os Estados Unidos são forçadas a entregar às autoridades de Washington os registos dos seus passageiros, os satélites acompanham-nos a todo o momento como bons anjos justiceiros.
Para tratar também de coisas como essas de alguém destrinçar se somos ou não “terroristas”, a União Europeia está em vias de concluir com os Estados Unidos um “acordo” de partilha dos dados de todos os cidadãos com contas bancárias através do código SWIFT. Não tenha dúvidas, o bigger brother “is watching you”, está a observá-lo onde estiver e a fazer seja o que for.
Para nossa própria defesa, claro. Como escreveu um jornalista norte-americano a propósito da Lei de Defesa Nacional, “afinal se não tivermos internet, se não mandarmos mails, se não escrevermos cartas, se não fizermos telefonemas, se não tivermos contas bancárias, se não viajarmos, se não dermos os dados pessoais aos nossos Estados, se não falarmos com estranhos não teremos nada a recear”.