PORTUCÁLIA

Janeiro 17 2013

XI PROGRESSO E ATRASO

 


Dadas as explicações do capitulo precedente, voltemos ao nosso memorando, de quem por
um pouco nos esquecemos. Apressemo-nos a dar ao leitor uma boa noticia: o menino desempacara
do F, e já se achava no P, onde por uma infelicidade empacou de novo. O padrinho anda
contentíssimo com este progresso, e vê clarear-se o horizonte de suas esperanças; declara
positivamente que nunca viu menino de melhor memória do que o afilhado, e cada lição que este da
sabida de quatro em quatro dias pelo menos e para ele um triunfo. Há porem uma coisa que o
entristece no meio de tudo: o menino tem para a reza, e em geral para tudo quanto diz respeito a
religião, uma aversão decidida; não e capaz de fazer o pelo-sinal da esquerda para a direita fá-lo
sempre da direita para a esquerda, e não foi possível ao padrinho, apesar de toda a paciência e boa
vontade, fazê-lo repetir de cor sem errar ao menos a metade do padre-nosso; em vez de dizer “venha
a nos o vosso reino” diz sempre “venha a nos o pão nosso”. Ir a missa ou ao sermão e para ele o
maior de todos os suplícios, isto faz que o padrinho desespere as vezes, e ate chegue a concordar
com a comadre em que o menino não tem jeito para clérigo; porem são nuvens passageiras; sempre
há isto ou aquilo que faz renascer todas as esperanças; e o homem caminha animado na sua obra.
O que ele porem esperava não esperavam todos, e ninguém via no menino senão um futuro
peralta da primeira grandeza; quem mais contava com isso era a vizinha do barbeiro, aquela a quem
ele chamava o agouro do pequeno. Era a tal vizinha uma dessas mulheres que se chamam de faca e
calhau, valentona, presunçosa, e que se gabava de não ter papas na língua: era viúva, e importunava
a todo o mundo com as virtudes do seu defunto. Serrazina e amiga de contrariar, não perdia ocasião
de desmentir o vizinho em suas esperanças a respeito do afilhado, declarando que não lhe via jeito
para coisa nenhuma, que não queria para coisa que lhe pertencesse o fim que ele havia de ter, e que
quando ele crescesse o melhor remédio era dar-lhe com os ossos a bordo de um navio ou por-lhe o
côvado e meio às costas. O barbeiro desesperava com isso; por muito tempo conseguiu conter-se,
porém um dia não pôde mais, e disparatou com a sujeita. Chegando por acaso à porta da loja, a
vizinha que estava à janela disse-lhe em tom de zombaria:
— Então, vizinho, como vai o seu reverendo?
Um velho que morava defronte, e que também se achava à janela, desatou a rir com a
pergunta.
O compadre foi às nuvens, avermelhou-se-lhe a calva, franziu a testa, porém fez que não
tinha ouvido. A vizinha pôs-se também a rir, percebendo o cavaco, e acrescentou
— Padre amigo do fado... tem que ver... Quando vai ele outra vez à casa dos
ciganos?
O velho defronte redobrou a risada. A vizinha continuou:
— Então ele já encarrilha o padre-nosso?
O compadre exasperou-se completamente; e estudando uma injúria bem grande para
responder, disse afinal:
— Já... já... senhora intrometida com a vida alheia... já sabe o padre-nosso, e eu o
faço rezar todas as noites um pelo seu defunto marido que está a esta hora dando coices no
inferno!...
— Hein?... o que é que você diz, senhor raspa-barbas? você mete terceiros na
conversa? disse a vizinha encrespando-se; olhe que esse de quem você fala nunca foi sangrador,
nem viveu de aparas de cabelos... Não se meta comigo que hei de lhe dizer das últimas e pôr-lhe os
podres na rua... Coices no inferno!!! ora dá-se? um santo homem... Coices no inferno... Pois agora
saiba, porque eu cá não tenho papas na língua, que o tal seu afilhado das dúzias é um pedaço de um
malcriadão muito grande, que há de desonrar as barbas de quem o criou... E não tem que ver,
porque ele é de má raça... já ouviu? não se meta comigo...
— E você, respondeu o compadre enquanto a vizinha tomava fôlego, por que se mete
com o que não é da sua repartição?
Ela prosseguiu:
— Hei de me meter; não é da sua conta, nem venha cá dar regras, que eu não preciso
de você...
— Mas o que tem você que entender com uma criança inocente que nunca lhe fez
mal?...
— Tenho muito, porque não me deixa parar os telhados com pedras, faz-me caretas
quando me vê na janela, e trata-me como se eu fosse alguma saloia ou mulher de barbeiro...
Digo-lhe e repito-lhe... aquilo tem maus bofes, e não há de ter bom fim...
— Está bom, senhora, respondeu o compadre que tinha bom gênio, e que só fora
levado àquele excesso pelo amor do afilhado; basta de rezingas, olhe a vizinhança.
— Ora, tomara a vizinhança ver-se livre do tal diabo...
O menino chegou nessa ocasião à porta, e pondo-se na ponta dos pés, esticando o pescoço, e
abanando-o como a vizinha e imitando-lhe a voz, repetiu:
— Ver-se livre do tal diabo...
O compadre achou tanta graça, que deu-se por vingado, e desatou a rir por seu turno.
— Ah! disse a vizinha, agradece a boa vontade, meu diabo em figura de menino; tu
não tens a culpa; a culpa tem quem te dá ousadias.
— A culpa tem quem te dá ousadias... repetiu o menino arremedando.
O compadre ria-se a perder.
A vizinha desesperada bateu com o postigo e recolheu-se, porém por muito tempo falou em
voz alta, de maneira que toda a vizinhança ouvia, dizendo quanto impropério lhe veio à cabeça
contra o barbeiro e o menino.
— O pequeno encheu-me as medidas, disse este consigo, vingou-me desta; agora
falta-me aquele velho de defronte que também a acompanhou na risota; mas não faltará ocasião.
Esqueceu-nos dizer que o barbeiro, apesar de ter sabido, pouco se importara com a prisão do
Leonardo, e referindo-se à causa da infelicidade deste, dissera apenas:
— É bem feito, para ele não se deixar arrastar para toda parte agarrado em quanto
rabo-de-saia lhe aparece.
Nem foi à cadeia visitá-lo, nem levar-lhe o filho para tomar a bênção, o que a comadre
muito reprovou quando soube.
O velho tenente-coronel, depois de ter posto na rua o Leonardo, informado miudamente,
como sabe o leitor, pela comadre do destino da Maria, decidiu tomar o menino sob sua proteção, e
acreditou que, se conseguisse felicitá-lo, lavaria seu filho do pecado de ter desonrado a Maria. Por
intermédio da comadre mandou oferecer ao compadre seu préstimo em favor do pequeno,
mandou-lhe propor até que o deixasse ir para a sua companhia. O compadre porém não esteve por
isso de modo nenhum, e até se prometeu aceitar para qualquer outra coisa a proteção do
tenente-coronel foi a instâncias da comadre.
— Não quero, dizia ele, que me roubem o gosto de tê-lo feito gente; comecei a
minha obra, hei de acabá-la.
— Homem, retorquira-lhe a comadre, você faz mal; olhe que o velho é homem de
representação; veja como ele com duas voltas e meia pôs o Leonardo na rua.
— Nada, não hei de dar o gostinho aqui a esta súcia da vizinhança; hei de eu mesmo
fazer a coisa por minhas mãos. Lá se o tenente-coronel quiser fazer alguma coisa por ele, aceito;
mas quanto a tirá-lo da minha companhia, isso nunca. Agora já é birra; hei de levar a minha avante.
XII ENTRADA PARA A ESCOLA
É mister agora passar em silêncio sobre alguns anos da vida do nosso memorando para não
cansar o leitor repetindo a história de mil travessuras de menino no gênero das que já se conhecem;
foram diabruras de todo o tamanho que exasperaram a vizinha, desgostaram a comadre, mas que
não alteraram em coisa alguma a amizade do barbeiro pelo afilhado: cada vez esta aumentava, se
era possível, tornava-se mais cega. Com ele cresciam as esperanças do belo futuro com que o
compadre sonhava para o pequeno, e tanto mais que durante este tempo fizera este alguns
progressos: lia soletrado sofrivelmente, e por inaudito triunfo da paciência do compadre aprendera a
ajudar missa. A primeira vez que ele conseguiu praticar com decência e exatidão semelhante ato, o
padrinho exultou; foi um dia de orgulho e de prazer: era o primeiro passo no caminho para que ele o
destinava.
— E dizem que não tem jeito para padre, pensou consigo; ora acertei o alvo, dei-lhe
com a balda. Ele nasceu mesmo para aquilo, há de ser um clérigo de truz. Vou tratar de metê-lo na
escola, e depois... toca.
Com efeito foi cuidar nisso e falar ao mestre para receber o pequeno; morava este em uma
casa da rua da Vala, pequena e escura.
Foi o barbeiro recebido na sala, que era mobiliada por quatro ou cinco longos bancos de
pinho sujos já pelo uso, uma mesa pequena que pertencia ao mestre, e outra maior onde escreviam
os discípulos, toda cheia de pequenos buracos para os tinteiros; nas paredes e no teto havia
penduradas uma porção enorme de gaiolas de todos os tamanhos e feitios, dentro das quais pulavam
e cantavam passarinhos de diversas qualidades: era a paixão predileta do pedagogo.
Era este um homem todo em proporções infinitesimais, baixinho, magrinho, de carinha
estreita e chupada, excessivamente calvo; usava de óculos, tinha pretensões de latinista, e dava
bolos 6 nos discípulos por dá cá aquela palha. Por isso era um dos mais acreditados da cidade. O
barbeiro entrou acompanhado pelo afilhado, que ficou um pouco escabriado à vista do aspecto da
escola, que nunca tinha imaginado. Era em um sábado; os bancos estavam cheios de meninos,
vestidos quase todos de jaqueta ou robissões de lila, calças de brim escuro e uma enorme pasta de
couro ou papelão pendurada por um cordel a tiracolo: chegaram os dois exatamente na hora da
tabuada cantada. Era uma espécie de ladainha de números que se usava então nos colégios, cantada
todos os sábados em uma espécie de cantochão monótono e insuportável, mas de que os meninos
gostavam muito.
As vozes dos meninos, juntas ao canto dos passarinhos, faziam uma algazarra de doer os
ouvidos; o mestre, acostumado àquilo, escutava impassível, com uma enorme palmatória na mão, e
o menor erro que algum dos discípulos cometia não lhe escapava no meio de todo o barulho; fazia
parar o canto, chamava o infeliz, emendava cantando o erro cometido, e cascava-lhe pelo menos
seis puxados bolos. Era o regente da orquestra ensinando a marcar o compasso. O compadre expôs,
no meio do ruído, o objeto de sua visita, e apresentou o pequeno ao mestre.
— Tem muito boa memória; soletra já alguma coisa, não lhe há de dar muito
trabalho, disse com orgulho.
— E se mo quiser dar, tenho aqui o remédio; santa férula! disse o mestre brandindo a
palmatória.
O compadre sorriu-se, querendo dar a entender que tinha percebido o latim.
— É verdade: faz santos até as feras, disse traduzindo.
O mestre sorriu-se da tradução.
— Mas espero que não há de ser necessária, acrescentou o compadre.
O menino percebeu o que tudo isto queria dizer, e mostrou não gostar muito.
— Segunda-feira cá vem, e peço-lhe que não o poupe, disse por fim o compadre
despedindo-se. Procurou pelo menino e já o viu na porta da rua prestes a sair, pois que ali não se
julgava muito bem.
— Então, menino, sai sem tomar a bênção do mestre?...
O menino voltou constrangido, tomou de longe a bênção, e saíram então.
Na segunda-feira voltou o menino armado com a sua competente pasta a tiracolo, a sua
lousa de escrever e o seu tinteiro de chifre; o padrinho o acompanhou até a porta. Logo nesse dia
portou-se de tal maneira que o mestre não se pôde dispensar de lhe dar quatro bolos, o que lhe fez
perder toda a folia com que entrara: declarou desde esse instante guerra viva à escola. Ao meio-dia
veio o padrinho buscá-lo, e a primeira notícia que ele lhe deu foi que não voltaria no dia seguinte,
nem mesmo aquela tarde.
— Mas você não sabe que é preciso aprender?...
— Mas não é preciso apanhar...
— Pois você já apanhou?...
— Não foi nada, não, senhor; foi porque entornei o tinteiro na calça de um menino
que estava ao pé de mim; o mestre ralhou comigo, e eu comecei a rir muito...
— Pois você vai-se rir quando o mestre ralha...
Isto contrariou o mais que era possível ao barbeiro. Que diabo não diria a maldita vizinha
quando soubesse que o menino tinha apanhado logo no primeiro dia de escola?... Mas não haviam
reclamações, o que o mestre fazia era bem-feito. Custou-lhe bem a reduzir o menino a voltar nessa
tarde à escola, o que só conseguiu com a promessa de que falaria ao mestre para que ele lhe não
desse mais. Isto porém não era coisa que se fizesse, e não foi senão um engodo para arrastar o
pequeno. Entrou este desesperado para a escola, e por princípio nenhum queria estar quieto e calado
no seu banco; o mestre chamou-o e pô-lo de joelhos a poucos passos de si; passado pouco tempo
voltou-se distraidamente, e surpreendeu-o no momento em que ele erguia a mão para atirar-lhe uma
bola de papel. Chamou-o de novo, e deu-lhe uma dúzia de bolos.
— Já no primeiro dia, disse, você promete muito...
O menino resmungando dirigiu-lhe quanta injúria sabia de cor.
Quando o padrinho voltou de novo a buscá-lo achou-o de tenção firme e decidida de não se
deixar engodar por outra vez, e de nunca mais voltar, ainda que o rachassem. O pobre homem azuou
com o caso.
— Ora logo no primeiro dia!... disse consigo; isto é praga daquela maldita mulher...
mas hei de teimar, e vamos ver quem vence.

publicado por portucalia às 21:53

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