A CARTA PERDIDA
Antonio Ribeiro de Almeida
Finalmente,depoisde umaviagemcansativa,eleschegaram aMariana.Eraaprimeiravezqueentravam naquelacidadehistóricaonde,emcadarua, existia, praticamente, umaigrejaquevinhadoperíodocolonial. Nãoteriatempodevisitartodaselas. Ia naPraçadas DuasIgrejas,onde, a deSãoFrancisco de Assis e a deNossaSenhorado Carmo estavam uma aoladodaoutra.Vinhapagarumapromessana do Carmo. Mostrou aofilhoomarcoqueos portugueses haviamalicravadocomosinaldoseudomíniosobreacolônia:eraaesferaarmilarquevinhadoperíododeDomManuel I.Eleresistia aotempo, enãose sabia, aocerto, adataemqueforainstalado. Ummenino,guiade turistas,quese mostravaloquaze falavasemparar, informouqueos portuguesesalio erigiramporvoltade 1784 equeD. Maria I,rainhade Portugal, desobrigou os construtores depagamentodeforopeloterreno. Sobreumacolunadegranito, demaisoumenoscincometrosdealtura, via-se aesfera. Os portugueses partiram eaqueleobeliscoficaracomotestemunhamudade umaépocadahistóriado Brasil. Curiosamente, os marianensesnãoo haviam destruídooudanificadocomoexpressãodeumpossívelsentimentodeódiocontrao colonizador.
- Filho, vamos entrar na Igreja do Carmo. Está na hora do seu pai pagar a promessa.
Ofilhonãose interessouemsaberquepromessaeraaquela. Ficara absorvido, contemplando aportaprincipale as duassacadas. Opai,desdeainfância,foraconsagradopelasuamãeàSenhorado Carmo. Nasuacarteira, carregava hámaisde 30anosoescapuláriodeNossaSenhorado Carmo. Vendo ocasamentodesuairmãnaufragar,peloalcoolismodocunhado, prometera àSenhorado Carmoque, seelevencesse ovício, visitariasuaigrejaemMarianae,duranteorestodavida, comungaria ocorpodeCristonodia16 dejulho,diadasuaFesta.Depoisquefez apromessa, nodia16 dejulhodoanoseguinte,semnenhummotivoaparente, ocunhadoavisouque, daquelediaemdiante,nãocolocariamais umagotadeálcoolnaboca. Ejápassaramaisdeumanoquenãobebia, e ocasamento,quepareciafracassar, voltou aosseusmelhoresdias.
Comrespeito,eleadentrou naigreja. Eralindacomseualtarmuitobrancoe, noteto, umapintura representavaNossaSenhorado Carmo,comoMeninoJesus, entregando oescapulárioa Simão Stock. Ajoelhou-sedefronteaoaltare, nosilênciodoseucoraçãofez umaprecede agradecimento àSenhorado Carmo. Enquantoisto, ofilhoexploravacadacantodaigreja, satisfazendo acuriosidadedosseusseisanos. Chamou-o elhedissequejáerahoradeviajarparaPonteNova. Suamãee a irmã esperavam osdoisaindaparaoalmoço. Entraram nocarroe ganharamnovamenteaestrada.
Mariana ia ficando rapidamente perdidaláembaixo, nasencostas. Jánãoerammaisavistados dajaneladocarroostelhadoscentenáriose astorresdesuasigrejas. Apaisagem eraalgoirreal. Veio-lhe àmemóriaaspinturasde Guignard (*). Osseusbalõesverdes,vermelhoseamarelosasubirparaumcéudeprofundoazul,enquantosuasigrejinhastambémgalgavam osmorrosde umaMinasGeraisqueexistiaapenasnocoração.
- “Pai, que é aquilo ?”
A perguntado filhointerrompeu seudevaneio. Elesestavam viajando juntose sozinhospelaprimeiravez. O filhohomemde quemtantoqueria se orgulhar. Erauma viagemrelaxada, descansadae sempressa. Não ultrapassara os oitentaquilômetros. Masnãoerapormedoouprudência. Estava debemcom avida. Importavaolhar,encher osolhoscom aquelas montanhas, absorvê-las, sepossível,paradentro desi edizerconsigomesmoqueaindaeraummineiro. Quase havia esquecido deresponder aofilho,maslogo o fez :
- “Aquilo, meu filho, é uma capelinha abandonada.”
Elasexistiam àsdezenasnazonarural. NummomentodeexaltaçãodaféCatólicaouparapagarumapromessa,algumfazendeiroousitianteas construíra. NasfestasdeSantoAntônio,SãoPedro eSãoJoão estiveramcertamentecheiasde fiéisquecomemoravam osseussantoscomfogueiras,batata-doceefoguetes. Comopassardosanose amortedosfesteiros,elasforam abandonadas, e,hoje, eramapenasmarcosdeumtempofelizquepassara. Oautomóvelpediaagoraumaterceiraapóstervencido umasubidae deslizava numtrechomaissuavedaestrada. Maselesabiaquelogosurgiria umanovasubidaecurvasperigosasparaenfrentarevencer. Eramassimasestradasnaquelaregiãoqueconhecia. Devezemquando, oDepartamentode Rodagens apresentava umatabuletacomumavisoquechegava asercômico:CURVAPERIGOSA A 200METROS. Mascomo, (pensava), todas ascurvasaquisãoperigosas. Jáhaviampassadoonzeanosqueelepartiracomsuafamíliaparaacapital. Ofilhoeraentãoumrecém-nascidoe afilhaestavacomseusoitoanos. Seuspaishaviam,contudo, permanecidoem PonteNova.Comotentaraarrancarosvelhosdaquelasmontanhas, daquelavidadointeriorquejulgavainsípidaemedíocre! Umaouduasvezesporanoeledeixava acapitale ia visitá-los nointerior. Voltavacomoardequemforavitorioso. Paraospadrõeslocaisatéqueeraassimconsiderado. Masosseuscolegasdeinfânciae dogrupoescolarnãoo reconheciamcomoumvitorioso. Evitava-os e antipatizavacomaquelescompanheirosdopassadoparaquemelecontinuava aserapenaso “Tininho” daDonaMarcela. Quandoalguémo chamava de “Tininho”, sentia-senovamenteindefesocomoacriançaquefora:aquelemeninodepésnochãoquecorriacomumcavalinho depauentreaspernas,pelospasseioseruasdePonteNova,paracompraropãodamanhã,ou, àtardepara buscarojornaldoseupaiquechegavapelotremExpresso. Oseumundoeraentãomuitopequenoesóampliado pelasnotíciasquechegavam de umaguerradistante. Vagamentelembravaquehavia algumaspessoasqueachavamquea Alemanha iriaganharaguerra. Seusargumentoseram deumsimplismodeestarrecer. Qualé amelhornavalhadomundo? E obarbeirorespondia “ex-cathedra” : é a Solingen. Abarbeariado Totonhoeraocentrodessasdiscussõespolíticase,semprequeeleescanhoavameupai, exibiasuaSolingencomtodoorgulho.
- “Não põe a mão aí, meu filho “, admoestoumeio rispidamente aoseufilho Henriqueque retirou,apressadamente, amão doisqueiro docarro.
Elegostava,desdepequenino, deapertaraqueledispositivodopaineleouviro clickqueproduziaquandooisqueiroestavaaceso.
- “Pai, que é trânsito precário ? “
- “É quando a estrada não está bem conservada, meu filho. Veja o que estamos encontrando: buracos, trechos sem asfalto, homens e máquinas trabalhando e os sinaleiros. Entendeu ? “
- “Entendi, pai. “
Maselecompletouparasi: “Équeestão próximas aseleiçõeseessessafadossóse lembram destasobrasnestasocasiões. “
- “Pai, vamos parar ? Eu estou apertado e quero urinar
- “Tá bem. “Respondeu opaiquetambém queriaurinar.
Parou ocarro, e,comosolhos, procurouumlugarondepudessematenderàquelanecessidade. Numamoita, viuumbomlugaràsombraequeos escondia dequempassassepelaestrada.Jáeramquaseonzehorase ocaloreragrande. Calculouquechegariam aPonteNovasóporvoltadomeio-dia. Mashavia nocarroalgumasbananasqueeramsuficientesparaenganaroestômagoatéahoradoalmoço. Saiu docarroespreguiçandoespalhafatosamente, dandoumberronãocostumeiroemoutroslocaiseocasiões. Ali, naquelesermos,ninguémouviria, e,quediabos, estava deférias,inclusivedosbonsmodos. Seufilhoolhavaparaosladose tentavadescerumpequenoaterroparachegaratéamoita.
- “Que é isto, meu filho ? Onde cê vai ? Urina aqui mesmo. Vamos regar a boa terra mineira. “
- “Não, pai. Alguém pode ver a gente. “
Eleconcordoucomofilho. Esperava,contudo,quequandoelefossehomemseriaumhomemsemtimidez, depalavrafortenabocaequenuncalevassedesaforoparacasa. Desceram oaterro,masanteseledesafiou ofilhoparasaberquemconseguiriaurinarmaislonge.Logoquechegaram aofundodoaterro,eledivisou umafolhadepapeloualgoparecido.
- “Ta vendo aquela folha ali ? “
- “Tou”
- “Vamos ver quem consegue atingi-la ?
Ele, depropósito, fez aurinacairpertodosseuspés. Ofilhourinou comforçae asuaurinaatingiu afolha. Comoapreciavaveraquela “vitória” dofilho! Achavaquecomistoelese afirmavasobreeleesobreomundo. Henrique riu avalercomoquechamou a mijada despretensiosa dopai, e,alegrecomavitória, subiu correndo oaterroemdireçãoàestrada.Enquantoistoopai,calmamente, abotoava abraguilhae prestouatençãoaopapelqueestavamolhadopelaurinadofilho. Aproximando-se, observouqueeraumenvelopemeiosujoequedeixavaentrevernoseuinteriorumafolhadecarta. Tudoindicavaquejaziaaliháalgumtempo. Eraumenvelopeaéreo, amarelecidopelosole muitasvezeslavadopelachuvaepelosereno.Comalgumadificuldadepôdeler:
“ParaJosé Arlindo da Silva.
RuadasGraças, 1169
BeloHorizonte, aoscuidadosde Marlene “
Meiocurioso, pegou o envelope, e, cuidadosamente, retirou a folhade papel. Erauma carta. Restava sóuma folhado quedeveria Tersido uma longacarta. No altodo papeluma letra femininaescrevera o númerosete, e, do outrolado, o númerooito. Começou, comalguma dificuldadee maiorcuriosidade, a lero queestava escrito:
“Esteja certo de que nesta carta não está tudo que gostaria de ter conversado com você. Mas, como sempre, as condições nunca permitiram muitas coisas. Saiba você que estou ajeitando.... (com “g” ou com “j”? Ela não sabia ao certo, pois escrevera, primeiro, com “j” e depois riscara colocando um “g”.) ....as coisas para esta mudança com o coração partido. De um lado, meu pai, minha mãe, minha família que eu tanto amo. Do outro, você e meus filhos que também amo demais. Mas não sei se depois dessa que você me fez posso confiar tanto. Estou tentando acreditar que foi mais uma falta de juízo, para não terminar com a coisa mais importante para mim e que deu sentido à minha vida, e que é a minhafamília. “
“-Ô pai, cê não vem ? “
Sualeiturafoi interrompidapelaperguntadofilhoqueespiavaparaeleládoaltodoaterro.Quasequeesquecera ofilho. Porummomentoteveumsobressalto, e, voltando-separaofilhoavisou :
Espere aí. Fique quieto que já estou indo. Estou acabando de ler uma coisa.
Acertou osóculose continuou aleituradacarta:
“... vou precisar de muitos argumentos para me fazer acreditar em alguma coisa. Só agora percebo o quanto meus filhos são importantes para mim. Sou capaz de morrer, se disto depender a felicidade deles. “
Era uma mulher no velho estilo. Pensou : quantas, hoje, seriam capazes deste sacrifício ?
Osolproduziaemseurostoquarentão algumasgotasdesuor. Umacigarracomeçou acantarbempróximodali. Nãoconseguiu,contudo, vislumbrá-la nomeiodoarbusto. Eraummacho, distotinhacerteza,poissóosmachoscantam. “Insetodafamíliados cicadídeos” veio-lhe àmemóriaumaauladeginásioemqueaprenderaistohámaisde vinte ecincoanos. Devezemquando, estaslembrançaso assaltavamnosmomentosmaisinesperados. Aindabemqueninguémouviasuasmemórias. Umbem-te-viacompanhou acigarra, e,porummomento,elemergulhou noverdedafolhagemesquecido dopapelqueestava nassuasmãos. Voltou osolhosparaacartaeaindaleu :
“...ou se esta família já não representa mais nada para você, seja sincero para que eu possa partir......esteja certo.... “
Orestoestavaapagado. Comoteriaidopararaliaquelacarta?
O filhogritou poreledo altodo aterro. Cuidadosamente, quasequecomcarinho, elecolocou os restosda cartadebaixode uma pedra. Nãosabia bemo porquê, masnãolheagradava a idéiade queaquela cartaperdida ficasse rolando ao léuno fundodaquele aterro. Na mesmamanhã, vivera duas experiênciastãoopostas. Comoirmão, foraagradeceruma grandegraçaquerecebera. O casamentode suairmã estava salvo. O daquela mulher, cujonomenemsabia, afundava-se nos desvariosdo marido. Sentiu porelauma penainfinita. Lembrou-se do queumdialhedissera umvelhojesuíta:”Meu filho, o mundo precisa de orações. Muitas orações. Se os homens rezassem mais ao Pai misericordioso, não veríamos tantas desgraças, tantas infelicidades.”
Eledecidiuqueiriarezarporaquelamulherdacartaperdida.Masnãopediria aoPaipeloseucasamento. Pediria,sim,masãmãede Jesus.Nãoforaelaquerogara aoFilhoquedesseàquelecasal, nasbodasde Caná, ovinhoquealegraoscorações?Poisbem,Elapoderiapedirdenovoequemsabe-maselenuncasaberia- aquelamulhereaquelehomemreconstruiriamseucasamento?
Vagarosamente, começou asubirobarrancoemdireçãoaofilhoqueo esperava.Juntosestavamnovamentenocarro. Vendoquenãovinhanenhumveículo,eleligou ocarroe partiu. Voltando-separaofilho, avisou :
- “Chegaremos a Ponte Nova na hora do almoço.”
“ -É bom, pai. Porque estou morto de fome.”
*) Alberto da Veiga Guignard (1896-1962),pintorbrasileiro,que se formou nasacademias de Florença e Munique. Em 1944 mudou-separaMinasGerais, aconvite doentãoprefeito Juscelino Kubstchek, formando umaEscola dePintura noParque Municipal.Seusquadros ficaramfamososcom aspinturas dascidades históricasonde predomina umrealismofantástico.