A ÚLTIMA MISSA DO GALO
AntonioRibeiro de Almeida
A Helena Córdova Cunha, tia e madrinha, que viveu
aqueles tempos.
Era1940, 24 de dezembro, vésperade Natal, uma terça-feira. Chovia queDeusmandava! Nunca, umdezembroforatãochuvoso. As estradasparaas fazendassóeram vencidas peloscarrosde boisoua cavalo. Isto, contudo, nãoimpedia queos agregadosda fazendada Sá Helenaviessem paraa Missado Galo. Elesenfrentavam o barroda estrada, com as botinas penduradas nos ombros, caminhando asquatroléguaspara chegarem aRioBranco. Vinham emturmas. Tagarelando, tocandosanfona deoitobaixos ecavaquinho. Osmaisafoitos dançavamemplenaestrada,mesmodebaixo de uma chuvinhamiúda, fazendopassar umagarrafa depinga demãoemmão. Haviamsaído daFazendaSãoFrancisco aoamanhecer.. Chegariam a tempopara oalmoço nacasa dafazendeira.
Nacozinhade SáHelena, omovimentoeragrande. AlémdacozinheiraMaria,trêsajudanteshaviam sido convocadasparaprepararacomidaparamaisde vintehomens. Nadamenosdedezgalinhasjáhaviam sido degoladasparamatarafomedaturma.ComaturmavinhatambémSáAnja. Elavivia nafazendadesdeostemposdaescravidão. Nãose sabia, aocerto,suaidade. Oscabeloserambrancoscomo oalgodão. Depanoamarrado nacabeça,umterçoemvoltadopescoçoquecaíasobresuablusadechitão,comsaiarodada,elacompunha umafigurarespeitávelpitandoseucachimbodebarro. Seuspésrevelavam umapelemaisgrossaqueocouro. Nãohaviaespinhooucacodevidroquealipenetrasse. Foram vãs todas astentativasparaquecalçassesapatos. Gostava deandardescalça,sentirsobosseuspésaterra. Católica,nãoaceitava ocultodaumbanda. Paraelaeramcoisasdotinhoso, do mofento, dobodepreto. Nãoperdiamissa,mesmoforadasfestas, emissacomacomunhãodoSantíssimo. Poristo,tododomingo, fizessechuvaousol,elavinhaparaamissadasdezhorasnaMatriz.
Erameio-diaquandoaturmachegou nacasade SáHelena. Osrapazesforam seajeitarnumbarracodoterreiro,enquantoSáAnja,comomaischegadaàfazendeira, entroucozinhaadentro, elogose assentou, decócoras, numcanto.
Achuva,queatéentãocaíra fininha, parou derepente. Océuse abriu eumsolforteeluminosoafastou asnuvens. Devagarinho,elefoi secando ostelhados, asárvores, asruase osterreiros. Passarinhos,queestavam recolhidosnosninhos, voaramparatodososlados e começaram aensaiarosseuscantos. AnoitedeNatalprometiaserdecéulimpo,commuitasestrelaseluanova.
Chegou a horada comilança. . Maria, a cozinheira, foi distribuindo os pratospelarapaziada. Satisfeitos, comos estômagoscheios, elesimprovisaram uma dançaquesóelesentendiam. Davam pinotes, passavam uma das mãosno chão, e, emseguida, gritavam emcoro: “Vem que te furo. “
SáAnja,depoisdoseualmoço, continuou acocorada noseucanto, fumando oseucachimbodebarro, observando omovimento. Daí apouco, chegou afazendeira.
- Então, Sá Anja, como vai você ?
- Graças ao bom Deus vou bem, Sá Helena.
- Como vai a nossa plantação de arroz ?
- Ah, sinhá, não tem mais bonito não por aquelas bandas. As espigas estão carregadas. Vancê vai ver quando for por lá.
- Muito bem, Sá Anja. Eu sei que posso contar com você e seus filhos. Vocês pegam mesmo no trabalho do amanhecer até ao anoitecer. Por isto é que vamos repartir a colheita à meia.
- SáHelenaeraumafazendeirajustaeseusagregadostinhamtodaassistênciamédicaefarmacêuticaqueelapodiadar. Poristonãoerabemolhadapelamaioriadosfazendeirosdaregiãoqueaindatratavamseusagregadoscomoescravos.
Atardepassoudepressa. Amoçadadormia asonosoltodebaixodobarraco. SáHelenae SáAnjaforamveropresépioda Dodoca. Eraomaislindodacidade. Abeatacolocavatodasuaimaginaçãoehabilidadenamontagemdopresépio. Patinhosdeplásticonadavamemlagosdeespelhos, boizinhos eburrospastavam numagramaverdedepapel, eatéummonjolo,comáguaetudo, subia e descia, fazendo “toc-toc’-toc”. Nofundo, iluminadoporumagrandeestrela, omeninoJesus dormiasobosolhosvigilantesde Maria e José. Dodocanãodeixava os visitantessemumaxícaradecaféesemoseufamosobolodearroz. Afazendeira,antesdesair, colocou umamoedanasmãosdaimagemdeumanjoqueagradeceu movendo, mecanicamente, acabeça. As duasmulheressaíram satisfeitas e encantadascomopresépio.Agora,eraesperarachegadadanoite. Antesdisto arapaziadafoitodafaceiraparaoJardim. Esperavamencontraralgumascabrochasládosladosdafazenda,ou,quemsabe,começarumnamorocomumamoçadacidade.
- Às dezhorasda noite, Sá Anjasubiu a Ruado Divinoemdireçãoà Matriz. Ia bemcedoparapegarlugarno bancoda frente, pertodo altar, e fazersuasorações. Todade branco, como véupretonuma mãoe o terço, comosempre, penduradono pescoço. A matrizde S. João Batistaerauma festade luzesquesubiam pelatorree iluminavam uma grandecruzquepodia servistaà distância. Ao entrarno templo, Sá Anjaajoelhou, comode costume, e fez o sinalda cruz. Poralgunsmomentos, elacontemplou, no altarcentral, a imagemimponentede S. João Batistaapontando parao altoe tendo aos pésumcordeiro. Elanuncacompreendeu porquea imagemdo santoeramaiordo quea do seuJesus. Foi logoparao seubanco. Poucoa pouco, a igrejaficou repletade fiéis. Como terçona mão, elaia rezando os mistériosdo nascimento do meninoJesus. Mulheresde fitano peitoapreciavam, à distancia, aquela pretavelha. Vendo-a tãomergulhada na oração, nãopuxavam umpéde conversacomofaziam entresi. À meia-noiteemponto, o padrecomeçou a missado Galo. Sá Anjaouvia comatenção“Dominus Vobiscum”, mas não compreendia aquele latinório. Olhava, fixamente, para o sacrário, e, no seu coração, pedia : “Menino Jesus, tem pena desta sua preta velha. “. Contrita, recebeu a eucaristia. Voltando para o seu banco, sentiu um sono profundo e uma irresistível vontade de dormir. Fechou os olhos e adormeceu. Sua vizinha de banco pensou que ela estava cansada e não a incomodou. Logo, o padre terminou a missa. Pouco a pouco a igreja foi ficando vazia. O sacristão, com a eficiência costumeira, foi apagando as velas do altar e ia começar a fechar as portas laterais quando avistou, adormecida, aquela preta velha. Tentou acorda-la. Em vão. Resolveu dar-lhe um leve toque nos ombros. Ao fazê-lo, o seu corpo tombou suavemente para o lado. Perplexo, saiu às pressas da igreja para chamar o vigário na Casa Paroquial. A igreja, mergulhada no silêncio e apenas iluminada pela luz mortiça da lamparina do Santíssimo, acolhia, naquele banco, o corpo de Sá Anja. Para ela, tinha, agora, pleno sentido, o latim que nunca entendera : “Ite, Missa est. “Ela haviapartido. Nãomaispara oseurancho desapé,maspara aCasa doPai, aoencontro doCristoquetanta amara.