À Minha doce e suave mãe, Alzira Córdova de Almeida, ofereço com a esperança que um dia nos reencontraremos.
Almeidas, Silvas , Ribeiros e Oliveiras existem às centenas de milhares pelo Brasil afora e em Portugal há vários séculos. Nas antigas colônias esses sobrenomes não significam mais nada.O nome Almeida já foi cantado por Camões nos Lusíadas quando declara no Canto I “ Almeidas, por quem sempre o Tejo chora. “ Pesquisei, mas não encontrei o motivo porque esses Almeidas fizeram o Tejo chorar. Uma possibilidade é que após a época das grandes navegações o rio Tejo e o porto só mostrassem navios decadentes e a época de riqueza era apenas uma lembrança do passado. Eu sou um “Almeida”, melhor dizendo um Ribeiro de Almeida. Meu sobrenome é incompleto pois deveria receber também o sobrenome “ Córdova” do lado materno e mostrar assim minha origem espanhola. Minha mãe chamava-se Alzirda Córdova de Almeida. Meu pai, por motivos que nunca soube, registrou os seus quatr9o filhos no cartório do Silvininho com sobrenomes diferentes. Talvez o culpado disto, como se fossem quatro filhos de famílias diferentes, tenha sido o escrivão que era bastante surdo ou meu pai que teria bebido umas e outras, ou, quem sabe alguém que ele mandou que nos registrasse. Por isto eu fiquei com o sobrenome português, “Ribeiro de Almeida”; minha irmã Teresinha com o sobrenome português e espanhol, “ Córdova de Almeida”; o Fabiano com o sobrenome “ Córdova de Almeida” e o caçula José Carlos apenas com o “ Ribeiro. No entanto, na minha cidade, todo mundo sabia que éramos filhos do “seu” Zé Ribeiro e da dona Alzira Córdova. Eles uniram os Ribeiros e os Córdovas, e, como uma boa parte dos brasileiros eram descendentes de imigrantes que vieram da Península Ibérica em meados do século XIX. Ouvi, de minha mãe, parte da história dos Córdovas e fui testemunha e fui testemunha de algumas passagens de sua vidas. Escrevo sobre eles porque admirei alguns e lamentei o fracasso de outros. Suas vidas, em muitos momentos, foram de aventuras cheias de quixotadas e conflitos. É sobre esses magníficos desajustados que escreverei ajudado pela memória casada com a imaginação.
OS CÓRDOVAS
Tenho sobre a mesa do escritório uma fotografia de 100 anos que mandei restaurar da família Córdova. A original, rasurada de cima a baixo, ficou comigo como uma lembrança de minha mãe Alzira. A foto é cercada por ramos de trepadeiras com suas flores de cor avermelhada que em torno família. A imagem ainda está perfeita. Helena, a filha mais velha, por razões que desconheço, rasurou sua fisionomia e a do tio Mário que a computação gráfica restaurou em parte. Fico a olhar por longo tempo esta família de antepassados na esperança que me revele um pouco de suas vidas num tempo que passou. Alí estão os meus avós com seus cinco filho e quatro filhas. Vou descobrindo detalhes naquela foto que um olhar apressado não revelaria. O tempo parou. Os Córdovas estão reunidos num galpão da Fazenda da Colônia para uma foto cujo destino era os Estados Unidos onde Justo, o filho mais velho de João Córdova Hernandes e Maria Sanches Garcia, cursava Engenharia Elétrica. Foto tirada por volta de 1900, de dia, e apesar do pano preto colocado pelo fotógrafo, pode-se ver uma claridade que vem de uma janela. Estão com roupa domingueira. No centro o patriarca tem o rosto num meio perfil. É um homem alto, semi calvo, bigode bem cuidado, cenho fechado, trajando terno escuro, gravata de três pontas sobre camisa alva e colete que sustenta a corrente de um relógio de bolso. Seu olhar está voltado para baixo e sugere certa ausência daquele instante. Estaria pensando no seu filho que estava tão distante e para quem mandaria aquela foto ? Sua esposa, postada à sua esquerda é do tipo minhon, meio gordinha, cm blusa de frio, golas e punhos de veludo preto, saia comprida até o chão como era costume usar naqueles anos. Seus cabelos são pretos, partidos ao meio e pequenos brincos adornam suas orelhas. Ela olha de frente para a máquina fotográfica. Suas mãos protegem ou seguram seu filho caçula que, por sua vez, com a sua mão esquerda agarra um dos dedos de sua mãe. Inquieto, com o corpo retorcido, ele tenta sair da imobilidade a que o fotógrafo obrigava a ficar os retratados até que ele disesse “ Olha o passarinho! “
A família Córdova reunida num galpão da Fazenda da Colônia por volta de 1912
Agora eu sei como eram quando crianças ou mais jovens as minhas tias Helena, Mariquinha, Carmen e minha futura mãe Alzira e meus tios Mário, Zezé, João, Francisco e Heitor. O olhar meio espantado de Mariquinha criança guarda semelhanças com a Mariquinha adulta de que me lembro. Alzira parece à vontade, olhando para frente, cabelos escorridos, mãos caídas ao longo do corpo, vestido cinza com sianinha branca à altura do pescoço. Calçava como a maioria das irmãs uma botinha. Apesar da foto em preto e branco é possível perceber seus cabelos claros do tipo louro que identificavam a Alzira adulta.
Os filhos dos Córdovas dividiam-se entre aqueles que herdaram a morenice quase moura da mãe e os que puxaram o lado nórdico do pai. De que brincaria Alzira com suas irmãs ? Sobre isto ela nunca me contou. De uma coisa tenho absoluta certeza, emocionalmente ela nunca saiu da Colônia que foi para ela o “paraíso perdido”. Mário , Helena e Zezé, os filhos mais velhos e teriam nascido nas Canárias segundo um curioso registro que se encontra no “Family Search-International Genealogical Index “ da Igreja dos Mormons em Salt Lake City, USA, numa pesquisa que meu irmão José Carlos realizou.
Eram fotógrafos, como ilustrado na imagem, que visitavam as fazendas do interior do Brasil com a famosa máquina apoiada num tripé e registravam os grandes momentos das famílias dos fazendeiros.
Na foto, Mário é reconhecido por suas orelhas de abano; Helena, que seria minha madrinha de batismo em 1935, exibe uma gola preta e gravatinha sobre uma blusa branca e longa saia que chega até a botinha. Zezé veste um terno branco, colete de quatro botões e gravata. Ele olha alguma coisa à esquerda do cenário. Depois da foto é possível que tenham servido uma lauta mesa com biscoitos, pão de queijo, café e broa de fubá. Na casa grande o patriarca deve ter conversado com o fotógrafo sobre o grande progresso da arte com aquela máquina maravilhosa, tipo fole, apoiada num tripé e fabricada nos Estados Unidos por E & Antony. A fazenda distava uns sete quilômetros de Rio Branco e uns doze de São Geraldo que ficava ao pé da serra do mesmo nome. Naquele ano de 1908 os espanhóis progrediam a olhos vistos. Sinal bem claro deste pujança era que o trem da Leopoldina Railway fazia uma parada na altura da porteira da fazenda para entregar tonéis de vinho importados da Espanha e barris de farinha de trigo. Carros e mais carros de boi levavam cana para o Engenho Central e para a usina do Bouchardet. O arroz, o feijão, o milho e o café davam e sobravam para os Córdovas e as famílias dos agregados. O que sobrava era vendido para a Casa Telles. Por que João Córdova Hernandes, sua esposa e alguns filhos que haviam nascido nas Ilhas Canárias haviam emigrado para o Brasil ? É quase certo que aquele jovem casal fora atraído pelos cartazes do governo Campos Salles ( 1898-1902), espalhados por toda Europa, incentivando e até subsidiando a imigração de pequenos agricultores. Mamãe me contou que os irmãos Córdovas se dividiram quanto ao país que escolheram para imigrar. Um dos irmãos de João Córdova, cujo nome não se guardou, preferiu imigrar para os Estados Unidos. É quase certo que ele e sua família se converteram à religião dos Mórmons e que algum descendente registrou os dados sobre seu irmão João nos computadores dos Mórmons em Salt Lake City. João e Maria ficaram no Brasil e se localizaram inicialmente no Estado do Rio de Janeiro num lugar que ficou conhecido como a Serra dos Espanhóis.
DO SOBRENOME CÓRDOVA E A VINDA PARA MINAS
O sobrenome Córdova não é comum no Brasil como Ribeiro ou Silva. A etimologia do nome indica que parece ser de origem árabe e indicar os artesãos que na Península Ibérica trabalhavam o couro. Em português tem-se “cordovão” para indicar o couro de cabra curtido e preparado para calçado. Córdova é um aportuguesamento de “Córdoba” histórica cidade da Espanha fundada pelos romanos no século III A.C. e que foi até visitada por Júlio Cesar na sua campanha contra Pompeu. Por Córdoba passaram os grandes movimentos da civilização européia. Existiu uma Córdoba romana, uma Visigodo, uma Islâmica, uma Cristã, uma Renascentista, uma Barroca e agora a Contemporânea. Por que esta família tem o sobrenome Córdova ? É uma pergunta que não sei responder e que exigiria uma longa pesquisa nas Canárias, se ali ainda existem registros que permitam levantar os emigrantes que partiram dali no fim do século XIX. Seria o sobrenome de cristão novo ou de quem exercia a profissão de trabalhar com o couro? Alguns descendentes dos meus avós, até onde sei, vivem em Minas e outros no Rio de Janeiro e Estado do Rio. Somente tia Mariquinha, já falecida, é que mudou para o Paraná e com quem perdemos contato. Meu avô João Córdova quando chegou ao Brasil conheceu, provavelmente, no Estado do Rio, o futuro usineiro Mário Bouchardet que o convidou a vir para Rio Branco e administrar uma das fazendas da Usina São João para plantar cana cujo cultivo ele dominava desde as Canárias. O usineiro, num segundo momento, ajudou meu avô a comprar a fazenda da Colônia. Rio Branco começava a se destacar como cidade do açúcar e do álcool e o poeta Belmiro Braga compusera até um versinho : “ Rio Branco, terra doce e lhana. Pudera que assim não fosse. Em terra de tanta cana, até nas almas há doce. “ A vida na Fazenda da Colônia corria tranqüila com os filhos mais velhos, Zezé, Mário e João ajudando o pai nas plantações e nas colheitas da cana e de cereais. As crianças cresciam e viviam sob a rígida disciplina que o casal aprendera de seus pais na Espanha. Era uma vida bucólica onde tudo tinha sua hora e lugar e que foi bruscamente interrompida pela gripe “espanhola” que chegou a Rio Branco e fez no mundo mais de 80 milhões de vítimas. As idas à cidade foram suspensas para a criançada e “seu” Córdova – como era chamado pelos agregados- colocou em prática seus conhecimentos de farmácia e homeopatia. Não temia a gripe e visitava os enfermos com a receita de beladona, suco de limão e três litros de água por dia. O comércio de Rio Branco fechou as portas e os moradores ficavam trancados em suas casas à espera da “maldita,” ou, das suas janelas, querendo saber quem a “libitina” havia levado para os altos do Cemitério de São João Batista. A gripe durou entre 1918 e 1919 e assim como apareceu, desapareceu. A vida voltou ao normal. Helena, já mocinha, que puxara a mãe com seus cabelos pretos e seu porte altaneiro, tinha seus pretendentes que vinham a cavalo negociar – era o pretexto – com o velho Córdova e olhar aquela jovem quando ela trazia o café para o visitante. Os encontros entre as famílias recomeçaram e com eles os saraus onde as moças aprendiam bordados, trocavam receitas de bolos, de doces e futricavam sobre os últimos namoros da cidade. As mais prendadas se exibiam ao piano. Em 1920 as músicas de Henrique Oswald eram as preferidas e rara era a moça que não sabia de cor a execução da Barcarola que a todos encantava. Nos salões, a figura de Mário, irmão de Helena, se impunha pela sua prepotência e caipirismo e intimidava os pretendentes anunciando que eles tinham primeiro de falar com ele para se aproximarem de Helena. “Seu” Mário Córdova era famoso nas redondezas por sua valentia e destemor. Entre os filhos mais velhos governava a Colônia com mão de ferro e iniciativa. Seu apelido era Tom Mix, caubói do cinema mudo segundo o que contou minha mãe Alzira:
“ No tempo do cinema mudo o Cinema Brasil passava os faroestes de Tom Mix. Cheguei a assistir alguns. Ainda me lembro de Tom Mix correndo com o seu cavalo Tony pelas pradarias e morros atirando nos bandidos. Filmes como “ O Vale da Prata”, “ O Fora da Lei” e “ Meu Cavalo Tony” ficaram na minha lembrança. Dizia-se que suas esporas eram de prata e ele caprichava na sua roupa. Como mocinho vestia sempre de branco, e, os bandidos, de preto. Era seu tio Mário que nos levava ao cinema. Não sei o que lhe passou pela cabeça que um dia comprou um cavalo parecido com o Tony. Escreveu uma carta para o nosso irmão Justo, que estudava nos Estados Unidos, e pediu um cartaz que reproduzia Tom Mix no seu caprichado vestuário. Foi no melhor alfaiate de Rio Branco e mandou fazer uma roupa igual. Toda tarde ele arriava o Tony e ensinava-o a trotar, balançar a cabeça, andar para trás, saltar obstáculos, correr e para abrutamente. Enfim, ele fez do seu Tony um excelente cavalo de sela. Os empregados da fazenda viam e aplaudiam as proezas do seu tio. “
Depois que o cavalo estava treinado chegou para ele o grande dia. No Cine Brasil ia passar em sessão de matinê um filme de Tom Mix. Era “ O Cavaleiro da Noite”. Mário preparou-se com esmero. Examinou cuidadosamente a sela do Tony, as ferraduras, o freio de boca e vestido todo de branco, com o chapelão colocado de banda, montou o Tony e saiu trotando em direção a Rio Branco. A sua passagem pela rua da Caixa D´Agua atraia os moradores que saiam das vendas e das casas para ver o desfile do seu tio. Na sua irreverência costumeira ele esporeava o Tony que ia soltando sonorosos peidos que obrigavam as envergonhadas mocinhas entrar correndo para dentro de suas casas. Quando chegou ao Cine Brasil amarrou a guia do Tony num poste e de espora e chapéu na cabeça entrou no cinema. Como tinha fama de valentão ninguém teve a coragem de se assentar atrás dele e pedir que tirasse o chapéu. Este era o seu tio e porque ficou conhecido como Mário “Tom Mix. “
OS CASAMENTOS DE HELENA E CARMEN
A tradição de primeiro casar a filha mais velha ainda regia a vida das famílias no início do século XX. Antonico Cunha, fazendeiro de largas posses, não se intimidou com as determinações de Mário e foi direto ao velho Córdova pedir permissão para fazer a corte à bela Helena. Moça resolvida, de chicotinho na mão, ela sabia conduzir sua égua mangalarga com rédea firme e espora afiada no calcanhar para visitar as fazendas vizinhas ou ir a Rio Branco ou São Geraldo. O namoro foi curto e mais ainda o noivado. Casamento marcado para o mês de maio de 1925 que coincidia com a chegada de Justo Córdova que terminara seu curso de Engenheiro Elétrico nos Estados Unidos. O velho Córdova na mediu mãos nas despesas e diretamente de “ A Nobreza”, a mais famosa casa de enxovais da rua do Ouvidor, na capital da República, mandou vir até Rio Branco duas costureiras para confeccionarem o vestido de noiva de Helena. Acompanhando as costureiras veio o Sr. Pacheco que se declarou como um dos donos daquela loja e que não poderia deixar de prestigiar um cliente tão importante. Nenhum dos Córdovas observou que aquele senhor estava de olho na bela e jovem Carmen nascida ainda nas Canárias e que herdara da mãe a brejeirice espanhola.
Os Silvas de São Geraldo, os Botelhos da Ponte Coberta, os Machados de Guiricema e até os Bernardes de Viçosa vieram para testemunhar o casamento de Helena com Antonico celebrado dentro da Missa e para o banquete que varou noite adentro na Colônia. O casal não esperou o dia amanhecer e partiu alta madrugada, cada um no seu cavalo, para a Fazenda São Francisco. Depois de um dia de tantas emoções eles estavam dispostos a cavalgar quatro léguas para o novo lar e fortalecendo as duas famílias de fazendeiros. O Sr. Pacheco não regressou com as costureiras, como era de se esperar. Ficou na cidade, hospedado no Hotel Braga, com ares de dandi, trajando nos dias quentes impecáveis ternos do melhor linho importado e casimira inglesa nas noites frias. Parecia realmente um digno representante da elite dos grandes proprietários das lojas elegantes do Rio de Janeiro na rua que os cariocas haviam batizado de Parisiense (rua do Ouvidor) . Nas conversas, após o jantar, refestelado numa poltrona de vime, fumando o seu Odalisca na sua piteira de ouro, ele falava com elegância e pausas estudadas sobre o futuro de Rio Branco e até enxergava a possibilidade de abrir uma filial de “ A Nobreza” na cidade. De vez em quando dirigia o diálogo para a peça de teatro “ Isto é que é “ representada pelas senhoritas da alta sociedade rio-branquense. Já a havia assistido e se encantava especialmente com a representação da Srta. Carmen Córdova que roubava a cena dos outros interpretes. Bastaram algumas dessas referências para que a Sra. Julieta Braga, proprietária do hotel e conhecida casamenteira lhe perguntasse um dia :
“ O senhor quer conhecer a senhorita Carmen ? “Pacheco não respondeu de imediato. Perguntou se não seria um incômodo para ela e se aquela família tão importante não consideraria uma ousadia de um carioca embora tenha acrescentado que sua avó materna era mineira de boa cepa, nascida em Sabará e descendente do famoso Barão de Cocais ( José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, 1792-1869) cuja fortuna depositada num banco da Inglaterra foi roubada pela Coroa Inglesa. Dona Julieta abriu-se no melhor dos sorrisos ao ouvir que seu hóspede era de origem tão nobre e que frente à mesma os Córdovas, e, especialmente o Sr. Mário Córdova não colocariam nenhum empecilho a uma aproximação com a filha caçula. Aos sábados, Carmen e suas irmãs vinham ao sarau da família Infante onde se fazia boa música com a pianista Zélia de Almeida executando peças de Ernesto Nazareth. As noites ficavam mais românticas quando chegava o Sr. José Ribeiro de Almeida Sobrinho, um solteirão obstinado, autodidata, que encantava os presentes recitando os seus sonetos. Numa noite de abril, perfumada pelas damas-da-noite do jardim do solar dos Infantes aconteceu mais um sarau. Dona Julieta já havia revelado à jovem Carmen o quanto estava entusiasmado por ela aquele Sr. Pacheco, rico e de ilustre descendência. Mário, como era costumeiro, acompanhou as irmãs e aceitou com desconfiança que Carmen fosse apresentada ao carioca. O solar estava cheio naquela noite e a pianista Zélia de Almeida iria executar uma nova peça de Ernesto Nazareth , a famosa “Odeon” e que era tocada em todos os salões da capital da República. Com alguma cerimônia o anfitrião, Sr. Paulo Infante Vieira deu início ao sarau. Os rapazes e as moças ocuparam seus lugares em fileiras opostas. Pacheco, desde que chegou não tirava seus olhos miúdos da bela Carmen que a todos fascinava com seu xale a “la espanhola”, um grande vestido colorido amplamente rodado. Depois da execução da profa. Zélia de Almeida o Sr. José Ribeiro de Almeida apresentou seu novo soneto que parecia escrito para atender os planos de Pacheco. À medida que ele ia declamando podia-se perceber que os olhos do carioca revelavam ternura, paixão e alegria. O sonetista declamava com voz grave e entonação prefeita. Toda sala fez silêncio quando começou :
“ Encontrei-te um dia tão formosa/ Tendo nos lábios um sorriso tal/ Que preso fiquei como mortal imberbe;/ ou pássaro que ao espelho pousa./ A princípio julguei-te banal. / Que não passavas de melindrosa/ Mesmo fútil, uma caprichosa como toda mulher fatal. Enganei, feliz e bom engano./ Julguei-te mal, perdão te peço./ Pois errar é do ser humano./ E desde então tenho desejos de arrojar-me a teus pés possesso/ E em plena rua te cobrir de beijos. “
Aplausos e cumprimentos de “ Muito bem ! “ vieram a seguir. Os pares se movimentaram para a primeira valsa da noite e Dona Julieta conduziu o empresário ao encontro de Carmen para uma apresentação formal. Ao ficar junto à espanholita ele se curvou como cavalheiro que era, e beijou sua mão. Mário observava a pouca distancia o comportamento do carioca e esboçou nos seus lábios finos um sorriso de ironia. Voltando-se para um amigo comentou :
“ Veja só, Zé da Lotinha, como uma cavalheiro deve cumprimentar uma senhorinha. Aprendeu como é ? “
Zé da Lotinha, meio sem graça, nada respondeu ao “seu” Mário. Daquele dia em diante e para os olhos das casamenteiras de Rio Banco, Dona Julieta selara mais um compromisso conjugal e os Córdovas iriam casar muito bem a filha caçula. Pacheco passou a visitar a Colônia e encantar o velho Córdova com a sua conversa envolvente e demonstrando grande conhecimento sobre os negócios de importação de casimira inglesa, linho do Egito e variação da moeda nacional frente à libra esterlina. Somente Mário mantinha-se desconfiado e perguntando ao pai se ele acreditava realmente que aquele carioca era tudo que dizia ser ou se tudo não passava de uma cariocada? Era, contudo, demasiado tarde para aquele irmão que olhava com desconfiança todos os pretendentes que se aproximavam de suas irmãs e nos quais via eventuais aproveitadores da riqueza da família. Ninguém deu atenção às suas suspeitas. Sua irmã fora conquistada pelo galanteio de Pacheco que descrevia o que significava morar no Rio de Janeiro com suas lindas praias e passeios sem conta. O pedido de noivado foi aceito e coroado com um anel de brilhante. Para surpresa de todos o Sr. Pacheco informou que voltaria ao Rio pelo trem Expresso porque os outros sócios de “ A Nobreza” pediam sua presença para o fechamento de uma importação de linho do Egito e casimira da Inglaterra. Fez questão de deixar marcado o casamento para o mês seguinte. Em maio o casamento foi realizado na matriz de São João Batista pelo Padre Solindo. O noivo, alegando novamente urgentes negócios no Rio, dispensou o jantar que o velho Córdova ofereceu ao convidados e partiu com a jovem esposa pelo Expresso da noite. No dia seguinte, desconfiado daquele casamento feito às pressas, Mário pediu uma ligação telefônica para o Rio. Em 1927 uma ligação para a capital demorava muitas horas ou dias. Quem pedia voltava para a casa e quando ela estivesse para ser completada a telefonista Sá Ilka mandava um mensageiro da Companhia Telefônica Brasileira chamar o cliente. Este era o Brasil de Washington Luís onde o progresso só existia na bandeira. Finalmente a ligação foi completada e Mario, usando uma diplomacia que não lhe era costumeira, soube na loja “ A Nobreza” que o Sr. Pacheco não passava de um balconista e que estava gozando sua licença matrimonial.
A COMPRA DA USINA DE AÇÚCAR EM UBÁ
Agricultor de poucas letras, homem e honra e ingênuo, o velho Córdova entregou-se de corpo e alma às novas orientações que seu filho Justo imprimira aos rumos da Colônia. Estava orgulhoso daquele filho que falava outra língua e trouxera dos Estados Unidos idéias novas e ousadas que levariam a família a dias de maior riqueza e esplendor. Mário, que havia sido o capataz, ficou num plano secundário cuidando dos agregados e resolvendo seus eventuais conflitos. Zezé, o poeta da família, devido à sua excelente caligrafia improvisou-se como guarda-livros e fazia a escrituração do fornecimento de cana para as Usinas Central e a São João, como ainda a venda de cereais para a Casa Telles e dos depósitos a juros no Banco Hipotecario e Agrícola. Com suas idéias de grandeza o “americano” Justo mostrou ao pai que continuando na agricultura não iria longe. A fortuna e o poder de Mário Bouchardet era um exemplo a ser seguido. Argumentava que partir para a indústria era o caminho e que na vizinha cidade de Ubá estava à venda uma pequena usina de açúcar cujas condições de compra atendiam aos recursos dos Córdovas. Dona Maria Sanches ouviu temerosa a proposta da compra e a saída da Colônia. Mais aborrecida e preocupada ficou quando soube, após o contrato de compra ser firmado por seu marido que assumia as dívidas dos Irmãos Silva sem conhecer o montante da mesma e confiado apenas no que haviam apalavrado. Ela era apenas uma voz humilde e fraca naquela família patriarcal e de nada adiantaram os seus temores. Ao ouvi-la o velho Córdova retrucava : “ Nosotros estamos tratando com hombres que tienen honra. “ No final de 1928 os Córdovas mudaram para Ubá e tomaram posse da usina que recomeçaria a produzir na safra do ano seguinte. Um exame mais cuidadoso das moendas e do vácuo revelou que apreentavam problemas. Foi o primeiro choque que abalou Justo Córdova e o sonho de produzir 500 arrobas de açúcar-dia se desvaneceu.. Foi convidado um técnico da Usina “Anna Florência, de Ponte Nova, que comandaria as reformas necessárias com a competência reconhecida em todo estado de Minas Gerais. Emilio Garavini veio e depois de cuidadoso exame declarou que era impossível o aproveitamento da moenda e que os Córdovas encomendassem outra em São Paulo. Doutra parte o contador Joubert Soares, após fazer um balanço nos livros contábeis demonstrou que os Irmãos Silva haviam ocultado uma dívida de mais de hum mil e duzentos contos de réis com os fornecedores de cana e que a safra de 1929 estava hipotecada ao Banco Agrícola como garantia de empréstimos. Os Córdovas haviam caído num elaborado “conto do vigário” com a cumplicidade do gerente do banco e as dívidas subiam a mais de 5 mil contos de réis. Estavam falidos. Mário Córdova pegou sua Mauser e saiu à caça dos Silvas que jurara matar. Sabidos e velhacos eles haviam viajado, na calada da noite, logo após a assinatura da escritura de venda para lugar incerto e não sabido. Desolados, tristes e confusos os Córdovas recorreram a um advogado local, mas sem nenhum resultado efetivo. O golpe fora muito bem arquitetado. De minha mãe Alzira ouvi que a casa, os móveis e ate o piano em que estudava foram à hasta pública. Em menos de uma semana os Córdovas viveram sua primeira diáspora. Helenacom a generosidade que a caracterizava, acolheu na sua fazenda as irmãs solteiras e Mário; Justo ficou em Ubá pois namorava a senhorita Laura Brandão , de tradicional família ubaense e tendo um gênio pacato não era uma ameaça para os Silvas.
REOMEÇO EM CANTAGALO
Os velhos Córdovas e seus filhos Zezé, João, Heitor e Francisco foram para o lugarejo de Cantagalo com o apoio do senador Sampaio Correias que os conhecia quando chegaram ao Brasil. Convidou a família a administrar uma fazenda que possuia na zona rural e parecia que os Córdovas iam recomeçar suas vidas depois daquela debacle. Isto não aconteceu. O velho Córdova mergulhou numa depressão profunda e ficava horas a fio numa cadeira de balanço, olhando para o nada e repetindo de vez em quando em voz alta : “ Caído de mi burra; caido de mi burra; caido de mi burra. “ Dona Maria Sanches tentava retirá-lo daquele cadeira, conversar, animá-lo, mas era um esforço em vão. Ele vivia agora num mundo à parte e só se alimentava quando sua esposa lhe dava colheres de uma sopa. Veio a falecer em abril de 1929, poucos meses depois que havia assumido a administração da Fazenda “Boa Esperança. “ Coube então ao seu filho Zezé a responsabilidade de tocar o trabalho na fazenda que ia desde a plantação de novos canaviais, feijão, manejo da criação do gado e dos suinos. Ele logo começou a ressentir-se da pesada responsabilidade, pois dormia pouco devido ao clima infernal da região que além de quente e úmido era infestado por pernilongos que penetrava nos cortinados e contra os quais de nada adiantava queimar bostas de boi. Os irmãos não trabalhavam como era de se esperar e ainda desejavam viver como nos anos dourados da Colônia. Além disto, com seu grande senso de honra Zezé trabalhava para economizar alguns contos de réis para redimir o nome de seu pai em Ubá.. De natureza sensível e reservada contava apenas com a solidariedade de sua mãe que assistia a tudo com grande apreensão na alma. Para ele tornara-se um hábito a visita mensal ao túmulo de seu pai no Cemitério de Nossa Senhora do Carmo. Sentado sobre o mármore filho ele ficava de olhos fechados não se sabendo se rezava a seu pai pedindo orientação para os problemas que enfrentava na fazenda ou se apenas vivia um momento de paz à sombra de um alto pé de salgueiro que parecia proteger aquele túmulo. Por isto, nenhum familiar deu maior atenção quando num domingo de abril de 1930 ele foi visitar o túmulo do pai. Sentou-se sobre a lápide, como sempre fazia, fechou os olhos e num gesto lento retirou do bolso um revólver que disparou contra o ouvido. O estampido alarmou um visitante que orava junto a outro túmulo e que veio correndo e viu, estendido sobre a laje aquele desconhecido. Outros homens também correram naquela direção e observavam aquele corpo que se contorcia e um filete de sangue que escorria do seu ouvido. Imediatamente aquleles visitantes carregaram aquele jovem bem vestido para o hospital “Dr. Eleusis Carneiro” onde um enfermeiro reconheceu o “seu” Zezé Córdova que ainda vivo dizia que chamassem sua mãe. O médico de plantão,Dr. Adalberto Lorga ligou para a sede da fazenda e em menos de uma hora chegaram ao hospital sua mãe e seus irmãos. Zezé continuava vivo e o médico informou que somente um neuroicirurgião poderia tentar remover a bala que se alojara provavelmente no lobo temporal. Dona Maria Córdova telefonou ao senador e amigo Sampaio Correia que mobilizou uma litorina da Central do Brasil que conduziu uma equipe de médicos e enfermeiros do Rio de Janeiro a Cantagalo. Naquela emergência a litorina teve passagem livre e sinal aberto nas estações intermediárias. Infelizmente, chegou tarde demais.
A ÚLTIMA DIÁSPORA DOS CÓRDOVAS
Com a trágica morte de Zezé aconteceu a última diáspora dos Córdovas. Dona Maria Sanches foi viver com uma irmã em São Gonçalo e pouco tempo depois veio a falecer. Os irmãos não mostraram ânimo e competência para continuar o trabalho de Zezé na fazenda do senador Sampaio Correias e retornaram a Rio Branco onde foram acolhidos por Helena que com seu marido Antonico possuia duas fazendas. Justo voltou para Ubá e acabou casando com Laura Brandão e tentou, por algum tempo, gerenciar uma usina elétrica na cidade de Rio Claro no Estado de São Paulo, pois era formado em engenharia elétrica. Acabou voltando para Ubá a rogos de sua esposa que chorava dia e noite e que dizia não suportar viver longe dos parentes e daquela cidade. Justo acabou a vida toda sendo professor de Inglês
no famoso Colégio São José que não sei ainda existe. De vez em quando ele ia nos visitar em Rio Branco. Mamae me contava que ele não aceitava nos anos 30 que ela namorasse um operário da Usina Rio Branco. Dizia que como poderia uma Córdova casar com um simples operário. Curiosamente das irmãs ela é que teve o casamento mais feliz e estável. Esse operário era aquele compositor de sonetos que frequentava os saraus na casa dos Infantes e recitava seus poemas.
Mariquinha encontrou outro carioca – sempre os cariocas – membro da família do Famoso Tabelião Penafiel – que fazia passar-se por médico, mas que não passava de um jogador de baralho. Ela teve muitos filhos e uma vida infeliz e mudando com frequencia das cidades devido às dívidas de jogo do seu marido. Acabou mudando para o Estado do Paraná e minha mãe não teve mais notícias dela e sua família. Heitor e Chiquinho encaminharam suas vidas no Estado do Rio e de suas vidas pouco soube. Os que sei é que estes irmãos, mesmo depois de casados, com filhos para criar continuaram sonhadores e quixotescos. Mamae me contou que no final dos anos 30 do século XX eles souberam que havia sido descoberta uma grande jazida de pedras preciosas na região de Montes Claros. Nâo pensaram duas vezes e viajaram para aqules sertões em busca da fortuna. Por lá estiveram algum tempo na garimpagem e acabaram voltando de mãos abanando e dívidas nas cidades ona haviam ficado suas famílias.
Mário e Heitor estiveram algumas vezes em visita à minha mãe. Eles, como ela, eram incorrigíveis saudosistas e sempre conversavam sobre os anos na fazenda da Colônia. Tio Mário levou-me uma vez, num passeio ao longo das linhas de trem da Leopoldina Railway, ao local onde existira a Fazenda da Colônia. Muitos moradores da beira linha reconheciam meu tio e o cumprimentavam das janelas ou das varandas de suas casas. Depois daquela caminhada de uns 6 kilômetros chegamos ao local onde existira a Colônia. Ele ia apontando e tentava me mostrar onde ficava a casa grande e eu apenas via o que não passava de um montão de paredes a ruir e a um riacho onde pescava bagres e eu via apenas um filete dágua. Com os meus 12 anos não conseguí reconstruir na imaginação o que fora a Fazenda da Colônia. Dos tios, Mário é o meu tipo inesquecível. Sua filosofia realista, quase grosseira e suas tiradas filosóficas me encantaram. A última vez que estive com ele foi no Rio de Janeiro por volta de 1951. Tia Carmen havia convencido minha mãe que eu devia fazer o curso Científico no Colégio Pedro II. Ela morava na rua Buenos Ayres, 248, no centro do Rio de Janeiro há poucos quarteirões do Campo de Santana. Minha tia considerava o sobrinho muito inteligente e a vida mostrou que eu era apenas um pouco inteligente. Esta fama nascera apenas porque eu cinseguia aos 6 ou 7 anos sintonizar a Rádio Nacional do Rio num rádio Philips holandês que meu pai comprara. Para os parentes era um assombro. Na véspera do Carnaval de 1951 eu e mamãe fomos mais uma vez ao Rio. Minha motivação sccreta não tinha nada a ver com o exame de seleção no Colégio Pedro II. Vivia a minha paixão de adolescente por uma linda jovem da família Drummond. Ela estava com sua mãe no apartamento da irmã no bairro de Copacabana. Cheio de saudade e levando um buquê de rosas eu rumei numa tarde para aquele endereço. Tentaria revê-la.. Sua veneranda mãe me atendeu pela porta da cozinha. Continuava a Dona Francisquinha, de eterno luto do marido, mineira tradicional. Agradeceu-me as rosas e despachou-me sem maiores delongas. Voltei arrasado para a casa de tia Carmen. Não sei o que disse da visita ou se disse alguma coisa. O dia seguinte era o sábado gordo de Carnaval e tio Mário veio para uma visita. Observou meu abatimento e quis que eu o acompanhasse até o Campo de Santana para um passeio. Contei-lhe o que para os meus 16 anos parecia uma tragédia. Lembro ainda do seu sorriso irônico e sua irreverência para me colocar de volta à realidade. Chamando-me pelo apelido “Toninho” comentou que a minha amada era uma mocinha como outras e que até soltava “puns. “ E completou que seu filho Mariozinho vinha domingo de Carnaval e me levaria para pular nos blocos que eram formados na Avenida Rio Branco . Assim aconteceu. Lá fui eu atrás do Mariozinho e entramos num bloco que pulava e cantava : “ Tomara que chova três dias sem parar. “ Uma mulatinha, cujo nome nunca soube, pegou minha mão e levou-me naquela procissão de alegria para brincar e, mais tarde para outras coisas mais.
Não passei no exame de admissão do colégio Pedro II. Com Alzira, minha doce e suave mãe, voltei para casa. Os Córdova não estão mais aqui. Suponho que existam descendentes no Paraná , no Rio de Janeiro e na minha Rio Branco vive o meu irmão Fabiano e as filhas do Tio Joao, pelo que sei. Espero que não se aplique a mim aquela famosa frase de Chateuabriand : “ Dá-se importância aos antepassados quando já não temos mais nenhum. “ Eu não tenho sequer o sobrenome, mas, à minha maneira, eu descubro no ocaso da minha vida que os amei, amo e amarei, até o fim estes magníficos desajustados.
Como espanhóis tiveram ao longo de suas vidas muitas “salidas” como o Cavaleiro da Mancha. Espero e rezo por cada um deles para que agora estejam naquele Reino de Vida Eterna, Amor, Beleza e Paz que Jesus Cristo prometeu na Sexta-feira Santa ao Bom Ladrão. E este final não é por acaso. Depois de deixar de lado este conto familiar eu o retomei e termino sua digitação exatamente na Sexta-Feira Santa de 7 de abril de 2012.
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