Desidério Murcho Universidade Federal de Ouro Preto
Uma das palavras mágicas que me escapou, e que cada vez é mais usada de modo deplorável é “comunidade”. Há uns anos, havia, por exemplo, filósofos, poetas e taxistas. Hoje, há a comunidade dos filósofos, a comunidade dos poetas e a comunidade dos taxistas. A palavra “comunidade” entrou no vocabulário contemporâneo sem que as pessoas se tenham apercebido de tal, violando o seu significado original a tal ponto que hoje nada quer literalmente dizer: mas indica, e de que maneira, como o pensamento contemporâneo politicamente correcto mais opressor ganhou cidadania onde nunca deveria ter tido permissão para entrar. O problema do pensamento politicamente correcto, ou da sua falta, é não distinguir entre a higiene verbal que elimina insultos e trai preconceitos — no modo como denominamos alguns grupos sociais, no uso do pronome masculino para falar de qualquer pessoa ou, a minha preferida, no uso do termo “homem” para falar da humanidade — e a histeria verbal que, além de irrelevante politicamente, provoca dissonâncias cognitivas desnecessárias. Uma comunidade, falando correctamente, é um conjunto de pessoas ligadas por laços profundos de ideias e práticas, partilhando uma visão do mundo e muitas vezes um território. O que isto significa é que não basta um grupo desagregado de pessoas que partilham apenas uma profissão — e muitas vezes, com o mínimo de diálogo possível — para estarmos perante uma comunidade. A comunidade dos médicos, dos poetas, dos filósofos ou dos taxistas é uma fantasia. Na melhor das hipóteses, há várias comunidades diferentes de pessoas que são médicas, poetas, filósofas ou taxistas. É o novo racismo contemporâneo: toda a gente tem de pertencer a uma raça, perdão, comunidade. Quando fui viver para Londres, uma das coisas desagradáveis foi ter de considerar pela primeira vez na minha vida a que raio de raça, perdão, etnia, eu pertencia. Tal coisa nunca me passou pela cabeça, pela razão óbvia de que não tenho coisa alguma a ver com a raça, perdão, etnia, a que supostamente pertenço. Eu sou eu e estou-me nas tintas para a minha origem étnica. E o estado devia estar-se também nas tintas para isso. Não que eu queira proibir as pessoas de se identificar com a sua etnia — também não quero proibir as pessoas de se identificarem com a sua equipa de futebol, o seu partido político ou a sua religião. Mas a verdade é que na sociedade contemporânea há muitas pessoas que não se identificam com essas coisas: que consideram o espírito comunitário algo que está perfeitamente bem para quem gosta disso, mas nós não gostamos, muito obrigado. É como a salada de alface: há quem goste, e há quem não goste. Teremos agora todos de comer salada de alface, gostemos ou não? O que há de sinistro nesta visão da sociedade é a ignorância histórica: as muitíssimas pessoas profundamente oprimidas ao longo de séculos só porque eram diferentes do que as suas comunidades esperavam delas, e não encontravam no seio das suas supostas comunidades senão preconceito, maus olhares, discriminação e insultos, velados ou não. Imagine-se um jovem homossexual numa cidade pequena e retrógrada, ou um jovem interessado em ler e estudar num bairro de pescadores habituados a ver os filhos trabalhar desde os nove anos, ou uma mulher com uma vida sexual exuberante numa cidade conservadora e profundamente católica. Faz-me impressão que se tenha esquecido a história da opressão social, nesta sociedade politicamente correcta em que a pertença a uma comunidade qualquer se tornou obrigatória. Bem sei que o comunitarista tem uma resposta à minha parca lição de história. Mas essa resposta nada faz senão juntar o insulto à injúria. A sua resposta é que o problema da mulher de saudável sexualidade exuberante era o seu isolamento comunitário: o que ela precisava era de pertencer a uma comunidade de mulheres como ela. Esta visão das coisas é assustadora, pois recusa-se a ver as pessoas como elas são, insistindo que sejam como não querem ser. Uma pessoa que gosta de azul numa terra onde toda a gente odeia o azul terá certamente interesse em conhecer outras pessoas que gostam de azul — mas daí a querer constituir com elas uma comunidade vai uma imensa distância; a distância da liberdade e da independência de espírito. Parafraseando Orwell, descemos a um ponto tal, que dizer o óbvio torna-se um imperativo; e neste caso o óbvio é que muitos poetas, por mais que gostem de conhecer outros poetas, não querem pertencer a uma comunidade de poetas, porque não querem pertencer a comunidade alguma, ponto final. Que a insistência em juntar as pessoas em magotes — perdão, comunidades — é um insulto torna-se óbvio se usarmos a nossa imaginação: eu sou negro e entro com a minha mulher num restaurante onde há saudavelmente pessoas de várias cores. Mas o criado, solícito, discípulo de Michael Walzer, e um comunitarista simpático, diz-me: “o senhor poderá querer sentar-se naquele canto, onde estão várias outras pessoas da sua etnia, para se sentir integrado na sua comunidade”. Deveria ser óbvio que isto é o nosso racismo de hoje. Assim, o comunitarista erra crucialmente, e é insultuoso, porque não entende que uma pessoa pode querer apenas ser tratada com a dignidade, respeito e simpatia que todos merecemos — e com total indiferença às suas opções sexuais, religiosas, filosóficas, artísticas ou profissionais, assim como à sua origem biológica ou social. Uma pessoa pode não querer de modo algum pertencer a uma comunidade de poetas só por ser poeta; pode preferir pertencer a uma comunidade de industriais, ou a nenhuma. E é insultuoso, e opressor, insistir que o único problema de quem é oprimido pelo preconceito social que o rodeia é faltar-lhe a inserção na comunidade certa. Apresso-me a desfazer um equívoco, pois alguns leitores poderão pensar que este é um manifesto contra quem gosta de pertencer à comunidade disto ou daquilo. Mas se entendeu isso, enganou-se. O que penso é que tanto os comunitaristas, com a sua ênfase na inserção comunitária, como os liberais, com a sua defesa da independência de cada pessoa, cometem o mesmo erro: pensam que todas as pessoas são como eles mesmos. O comunitarista pensa que toda a gente precisa de comunidades para se realizar, porque ele é assim; o liberal pensa que toda a gente precisa da independência das comunidades, porque ele é assim. Mas a verdade é que diferentes pessoas vivem de diferentes maneiras e precisam de diferentes interacções sociais. Algumas pessoas não se sentiriam realizadas e felizes se não estivessem integradas numa comunidade qualquer — da equipa de futebol à religião, passando pelo partido político e pela origem étnica. Mas outras não se sentiriam realizadas e felizes se fossem obrigadas a estar integradas numa comunidade, seja ela qual for, incluindo a das pessoas que têm a mesma profissão que elas. As pessoas são diferentes umas das outras. O que para umas é o paraíso da identidade, para outras é a opressão do rótulo; o que para umas é o insulto de não serem reconhecidas como membros de dada comunidade, para outras é o paraíso porque se estão nas tintas para esses aspectos da sua própria vida. Parece-me que teríamos uma sociedade mais saudável se as pessoas dos dois géneros se sentissem igualmente bem, nenhuma delas sendo obrigada a integrar-se em comunidades, nenhuma delas sendo obrigada a não se integrar em comunidades. Posto isto, não sei bem o que pensará a comunidade dos leitores da Crítica. Desidério Murcho desiderio@ifac.ufop.br