APRENDENDO A LER
Antonio Ribeiro de Almeida
Parece que foi ontem que tomei minha pedra de ardósia, meu caderno de caligrafia, a tabuada, minha goiabada com queijo e pão, coloquei-os no embornal para ir `a primeira aula na escola de Dona Olga. No dia anterior, mamãe me dissera:
- Amanhã, filhinho, você vai entrar na escola da Dona Olga.
Eu esperava esta notícia com grande ansiedade. Já aprendera o alfabeto e sabia a tabuada de somar e diminuir. Mamãe era de opinião que isto era o mínimo que um filho seu deveria saber antes de entrar na escola. Por isso, todas as manhãs, na cozinha ensolarada da nossa casa de pau – a- pique, ela ensinava-me o alfabeto e os números. Naquele ano de 1940, não existia em Serrana jardins de infância e apenas algumas senhoras se dedicavam ao que hoje se chama ensino pré-primário. A escola da Dona Olga era das mais conceituadas porque ela era enérgica, mas também carinhosa e dedicada aos seus alunos. Na sua escola, nunca existira a temível palmatória que continuava a imperar na escola do “Seu”Fuinha e na escola da Dona Marola.
Não existia na região de Serrana uma didática única para se ensinar a ler e a escrever. Na roça, lá pelas bandas do São Francisco, quem ensinava as letras era mestre Teobaldo que usava sua sanfona de oito baixos para alfabetizar e alegrar .À medida que ia escrevendo no quadro-negro as letras do alfabeto ele sanfonava a “danadinha”( nome que dera ao instrumento) e cantava para a classe :
- Menino, que letra é esta?
E a classe respondia, em coro:
-Seu mestre parece um A .
E neste clima alegre e folgazão os meninos do mestre Teobaldo iam aprendendo o ABC e a Tabuada.
Mamãe, apesar de ser da roça e contar como era a escola de mestre Teobaldo, mudara para a cidade e me destinara à escola de Dona Olga. Tinha lá suas dúvidas quanto ao método do professor sanfoneiro. Na véspera das aulas, ela levou-me à Papelaria do Lalemant e na Loja do Foca onde comprara a pedra, um par novo de botinas e suspensório. Até aquele dia, eu usava botinas apenas aos domingos para ir à Missa e à matinê do Cinema Brasil onde passava o seriado “Flash Gordon no Planeta Mogon”. Era o meu mundo, o mundo de um menino de seis anos. Ir para a escola não me desobrigava, contudo, de ganhar os meus tostões vendendo carambolas na rua e entregando, religiosamente, os tostões à minha mãe.
A aula de D. Olga começava bem cedinho e, antes das sete horas da manhã, os alunos formavam filas no portão da sua casa. Para começar aquele dia tão importante da minha vida, eu passei, antes, na Igreja Matriz e aos pés da imagem de Santo Antônio pedi que me ajudasse, pois a ele fora consagrado. Ele ajudara minha mãe a casar, donde sua fama de “casamenteiro”, meu pai a comprar nossa modesta casa de pau- a- pique e a encontrar qualquer objeto que se perdesse. De vez em quando, eu via minha mãe procurando alguma coisa e rezando, baixinho, a oração que um dia me ensinou : “Aonde vais, Antônio ? Vou contigo Senhor. Não! Comigo não irás. Ficarás no mundo para ajudar os homens a encontrarem o que perderam. “ E logo, logo, minha mãe encontrava o que havia perdido. Naquele dia, aos seus pés, eu pedira para que não deixasse que eu fosse mandado para o Seminário do Caraça, na região de Mariana. Na minha família, ainda se adotava o costume antigo de se dedicar o primeiro filho homem a Deus e isto significava seguir a carreira eclesiástica. O Seminário do Caraça era o terror para os meninos que ouviam coisas do arco da velha. A disciplina era rigorosa e a vida começava às quatro horas da manhã com um banho na cachoeira, seguido de Missa às cinco horas, oração e café somente às sete horas. Depois do café, vinham as aulas em que além do Latim, era ensinado até o Grego.
Depois de passar na Matriz, fui para a escola da Dona Olga. Fui o primeiro a chegar. A casa, embora velha, deixava transparecer uma opulência de inicio do século. Guardando a escada de mármore branco, dois leões esculpidos na pedra olhavam quem chegava. Na varanda, na parede de fundo, divisei uma pintura meio desbotada pelo tempo. Rosas emolduravam uma cena campestre onde um menino e uma menina corriam num campo . Ela, com seu chapéu de fitas e ele empurrando um arco. Parecia que a menina tentava alcançar o menino para também rolar o arco. Eu nunca vira em Serrana uns meninos tão bem vestidos como aqueles. Estava ainda absorvido por aquela pintura de um jardim europeu quando fui interrompido no meu devaneio por um menino que chegou :
- Qual é o seu nome ?
- Armando Batista.
- O meu é Joaquim Belisário. Sou filho do dr. Belisário. Onde você mora ?
- No Barreirinho, respondi meio contrafeito.
- Eu moro na Praça.
Com aquela resposta, fiquei paralisado e não quis mais conversa. O recém - chegado também me olhou displicentemente e não me deu mais atenção. Morar na Praça era um privilégio para os filhos dos ricos de Serrana. Naquele momento, eu me vi como o filho do sr. José Ribeiro de Almeida, operário da Usina Central, que morava numa rua sem calçamento e em casa de pau-a-pique, e um sentimento confuso, que não sabia ser de inferioridade, fez subir pelas minhas pernas um certo tremor que chegou até o peito. Para disfarçar, olhei o céu e o sol que vinha nascendo no final da Rua Nova . Outros meninos e meninas começaram a chegar. Vinham em grupos, revelando uma camaradagem antiga. Só eu chegara sozinho. Estava, contudo, esperançoso. No fundo de minha cabeça,ouvia a frase que minha mãe me dissera um dia e que sempre me repetia : “Meu filho, uma cigana que passou por aqui olhou sua mão e viu nela uma pinta. Disse que você será, um dia, um grande homem”
Instintivamente olhei a palma da minha mão para conferir se a pinta estava mesmo ali. Finalmente, D. Olga abriu a porta da escola. Era uma senhora idosa, magra, usando um vestido preto e que a cobria até o pescoço. Ordenou-nos que entrássemos em filas. Meninos de um lado e meninas do outro. Assentei na última carteira e retirei do meu embornal o material escolar. Olhei, de soslaio, outros meninos que retiravam o material de vistosas pastas de couro. D. Olga fez a chamada e começou sua aula pela Cartilha da Vovó. No final do primeiro mês, eu já estava lendo sentenças que usavam todas as letras. Cada aluno ia para frente e, de pé, lia a frase que a professora apontava. Ainda recordo que a primeira leitura que fiz foi : “A ave vive e voa. Vovó viu a uva e o neto.” Mas eu nunca vi vovó.
Hoje, passados tantos anos e já velho, quando vejo uma uva num super-mercado, aquelas frases sempre voltam à minha memória como um “ritornello”do Bolero de Ravel. Na Cartilha, a vovó viu a uva , mas eu não sei se minha avó viu mesmo, algum dia, a uva. Eu ainda vivo e aves vivem e voam. Sobre minha casa passam pombos e rolinhas em revoadas. De vez em quando, até periquitos de um verde-cré. Em mim, voam estas recordações da infância que procuro aprisionar em palavras. Quando não estiver mais aqui para onde irão as minhas recordações e as recordações daquelas outras crianças que aprenderam a ler na Escola da D. Olga ?